Ao princípio é nada um sopro apenas


"Ao princípio é nada um sopro apenas
um arrepio de escamas um perpassar de sombra
como de nuvem marinha
que se esgarça nos radiais tentáculos da medusa
não se dirá que o mar se comoveu
e que a onda vai formar-se deste frémito
no embalo da água oscilam peixes
e das algas as hastes serpentinas a correntes a dobram
como ao vento as searas da terra e as crinas dos cavalos
entre dois infinitos de azul
a onda vem toda de sol vestida e rebrilhante
líquido corpo de reflexos cegos
da terra o vento corre para ela
tal o macho cioso para a fêmea aberta
transportando consigo o pólen das flores
fecundada a onda rola
agora trovejando
na corrida para o parto que a espera
no leito de negras rochas que na costa 
se adorna de mil vidas fervilhantes
mais alto ainda as águas se suspendem
e no segundo final a gestação imensa
e quando num furor da vida que começa
a onda se despedaça no rochedo 
o envolve o cis o aperta e dilacera
da branca espuma do sol
do vento que soprou dos peixes
das flores e do seu pólen
das algas trémulas do trigo
dos braços da medusa
das crinas dos cavalos
do mar da vida toda
nasce Afrodite amor
nasce o teu corpo."

José Saramago

2 comentários:

  1. Não sou (era) grande fã de Saramago, mas tenho que admitir que era um génio.

    Gostei bastante desse texto que expôs dele.

    Um beijinho
    e
    bom fim de semana

    Assiria

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  2. Não conhecia o poema. Achei-o delirante!...
    E ainda estou a ver se encontro nele Saramago.

    Obrigada!

    Um beijo

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